Outubro de 2020
Afonso Carvalho, CEO do Grupo EGOR | Revista Dirigir & Formar IEFP
A oportunidade de redesenhar o mundo do trabalho para torná-lo mais significativo, produtivo, saudável, motivador e criativo.
Viver num momento extraordinário implica estar disponível para aceitar desafios, problemas e situações inimagináveis que nos podem colocar perante o melhor e o pior de nós enquanto seres humanos, profissionais, alunos, cidadãos ou meros mortais. Independentemente se somos atores ou meros espectadores deste filme, estamos numa situação privilegiada, com vista sobre uma fase ímpar da nossa história que provavelmente não se voltará a repetir no sentido em que, o despertar para uma série de fragilidades humanas, sociais e económicas terá consciencializado nações e governos para instituir planos de contingência que jamais foram equacionados e que porventura servirão de base a eventuais réplicas ou episódios similares num futuro próximo. O fascínio deste período acaba por ser a dimensão da aprendizagem que se consegue retirar depois de expurgadas todas as redundâncias que não acrescentam valor imediato ou a longo prazo.
Um dos ecossistemas que está em franca mutação é o do mundo do trabalho, uma vez que nos últimos anos foram poucas as disrupções que tiveram um impacto tão significativo como os meses da pandemia, isto porque, num curto espaço de tempo trabalhadores e empresas foram forçados a adotar modelos de trabalho, modelos de gestão, mecanismos de controlo e processos e sistemas de informação robustos o suficiente para garantirem a continuidade dos negócios não comprometendo ainda mais o contexto delicado que a pandemia provocou e continuará a provocar. Os avanços tecnológicos, sobretudo aqueles que impactaram e impactam substancialmente o mundo do trabalho, nas últimas décadas têm sido orquestrados na sua grande maioria pela mão do homem e menos por questões de outra índole, nomeadamente por eventos mais ou menos naturais, avassaladores e transformacionais tal como esta pandemia tem demonstrado.
No início do ano, tal como o estudo “Automação e o Futuro do Trabalho em Portugal”, elaborado pela CIP (Confederação Empresarial de Portugal) em parceria com o McKinsey Global Institute e a Nova School of Business and Economics demonstrou que as grandes preocupações centravam-se sobretudo em temas como a automação, o impacto da robotização, a redundância de cerca de 1,1 milhões de postos de trabalho, a escassez de mão-de-obra qualificada, a necessidade de atrair e reter recursos humanos oriundos de outras geografias para suprir vagas mais ou menos qualificadas, a requalificação profissional e o envelhecimento da população ativa. De um dia para o outro tudo mudou e os desafios e as prioridades alteraram-se por completo na esfera do mundo do trabalho, uma vez que as diferentes e complexas vertentes que orbitam ao seu redor multiplicaram-se com estrondo deixando trabalhadores e empresas com o pior sentimento possível, o medo e a incerteza.
A teoria da seleção natural de Charles Darwin talvez nunca tenha feito tanto sentido e nunca esteve tão atual, pois só os mais fortes, ágeis e com um nível de adaptação acima da média conseguem vingar e prosperar neste contexto.
Portugal é um país muito assimétrico ao nível empresarial e o mesmo se passa com as diferentes gerações que confluem no mercado de trabalho, o que quer dizer que as nossas empresas estão em patamares muito distintos no que diz respeito à transformação digital, aos avanços tecnológicos e a práticas de inovação e o mesmo se passa com as diferentes gerações (Baby Boomers, X, Y, Z e a Alpha) relativamente à adoção de práticas, processos e ferramentas tecnológicas. A pandemia, para o bem e para o mal, está a funcionar como uma maré vazia que deixou a céu aberto fragilidades, oportunidades e necessidades críticas dos trabalhadores e das empresas.
O trabalho remoto por exemplo, chegou depressa, instalou-se ainda mais rapidamente e não irá desaparecer a essa velocidade, antes pelo contrário. O trabalho remoto espelhou e reforçou desigualdades geracionais, ritmos e produtividades distintos, desigualdades tecnológicas, ineficiências operacionais, a importância da supervisão e do acompanhamento presencial e talvez mais grave ainda que tudo isto a fragilidade da mente e do corpo humano quando transportada de um ambiente ultra social para um ambiente de confinamento ultralimitado ao virtualmente possível e nunca imaginado.
Segundo um estudo realizado por Nicholas Bloom, Professor no Departamento de Economia da Universidade de Stanford, estamos perante um novo modelo económico, social e de trabalho intitulado de “working-from-home-economy” e que, segundo o próprio, não é mais do que uma bomba relógio que maximizará as desigualdades entre trabalhadores e a erosão dos centros das cidades. O mais curioso é que em 2014 Nicholas Bloom captou a atenção de muitos jornalistas, gestores e trabalhadores com os resultados positivos do seu estudo sobre teletrabalho, sobretudo ao nível dos aumentos médios da produtividade e do equilíbrio trabalho-família que se conseguia alcançar fruto deste modelo. No entanto, a situação alterou-se por completo, fruto da magnitude da pandemia que fez convergir quatro variáveis muitíssimo difíceis de equilibrar em contexto de teletrabalho (crianças, espaço, privacidade e escolha) daí a sua posição vincada sobre os efeitos nefastos do modelo forçado de trabalho remoto, os efeitos secundários a curto ou médio prazo na produtividade dos trabalhadores e, não menos importante, no colapso gradual dos processos de inovação empresarial devido à escassez ou mesmo inexistência de contatos presenciais no escritório.
Independentemente do que se está a passar e do que se irá passar ao nível organizacional, a verdade é que a capacidade humana em se adaptar, transformar e reinventar face ao contexto muito adverso com que se deparou foi extraordinária, ainda para mais quando a realidade Portuguesa evidenciava claramente um nível de aceitação muitíssimo baixo de políticas e práticas de teletrabalho por parte das empresas, algo que o estudo da autoria de Ana Almeida e Maria Luísa Cristovam, datado de 2000 e intitulado “O teletrabalho em Portugal” evidenciou deixando ainda indicações claras sobre o rumo a seguir no que concerne às prioridades legislativas para acautelar qualitativa e funcionalmente o teletrabalho ao mesmo tempo que se deviam testar outro tipo de práticas e modelos típicos da economia do conhecimento que são a base fundamental de uma cultura de inovação. Infelizmente e tal como as autoras anteciparam, Portugal teve uma atitude de “wait and see” não se preparando minimamente para esta disrupção.
Para a frente é que é caminho, por isso o mais importante é tentarmos perceber como é que conseguimos garantir no ecossistema laboral que cada vez mais entra e entrará pela casa adentro uma simbiose que se alinhe com as expetativas de todas as partes garantindo níveis máximos e contínuos de produtividade, rotinas e processos de trabalho adaptáveis às circunstâncias, experiências de teletrabalho recompensadoras, confortáveis e de acesso equitativo, realidades onde a tecnologia é suficiente q.b. e que não esmaga pelo excesso, que existem barreiras claras entre trabalho e o que não é trabalho, níveis de supervisão que fomentem a aprendizagem e comunicações regulares e transparentes o que a par de outras políticas presenciais ou de regimes rotativos irá salvaguardar o lado social que o modelo presencial tanto nos habituou.
A par de tudo isto, é preciso ter consciência que diferentes pessoas em diferentes níveis hierárquicos têm diferentes necessidades e que os modelos terão de acautelar este ponto de modo a não alavancar ainda mais as desigualdades hierárquicas pelo que o papel dos líderes continuará a ser decisivo não só neste eixo, mas também para garantir que os objetivos que se definem são ambiciosos.
As empresas são organismos vivos e dependem cada vez mais dos saltos tecnológicos, da transformação digital, dos novos produtos ou serviços que apresentam no mercado e das vantagens competitivas que possuem comparativamente aos seus concorrentes, isto se quiserem estar constantemente na crista da onda garantindo a sustentabilidade do seu negócio no longo-prazo, o que implica uma abordagem ecossistémica à inovação abrindo assim espaço, recursos e investimento para que este processo funcione e seja realmente diferenciador. O desafio está assim na capacidade que os líderes e os liderados têm em garantir que as suas organizações, independentemente de qual seja o modelo de trabalho que esteja em vigor, de conseguirem, que mesmo num contexto adverso como o que temos vivido fruto da pandemia e que se carateriza pela imprevisibilidade e pela incerteza, o processo de inovação não esmorece e que antes pelo contrário é um fator distintivo da organização.
Os processos de inovação podem inclusivamente ser um fator preponderante de motivação e “engagement” numa fase em que as ligações físicas e presenciais estão condicionadas permitindo através de modelos colaborativos, interativos e regulares manter os trabalhadores ligados a um propósito único e transversal o que tem como consequência positiva a capacidade de antecipar mudanças e de aumentar a resiliência. Exigem-se lideranças ousadas que invistam em pessoas, inovação e tecnologia para se reinventar a forma como sairemos desta crise o que irá resultar em ideias transformadoras e sustentáveis para trabalhadores e empresas voltarem a ter rotinas de trabalho saudáveis, equilibradas e recompensadoras. Estamos no meio da tempestade perfeita para trabalhar eficazmente a oportunidade que temos à frente dos nossos olhos e que permitirá transformar modelos organizacionais, modelos de trabalho flexíveis, processos e modelos de gestão de trabalhadores, criação e introdução de novas tecnologias para gerir o teletrabalho ou qualquer outro modelo que seja adotado ou necessário. É urgente investir em formação, requalificação e massificação do uso das novas tecnologias para garantirmos um salto tecnológico na nossa força de trabalho de modo a aumentarmos os níveis de produtividade, crescimento e inovação.
Nada disto se faz sem vontade, sem um plano realista e estratégico, sem mudanças culturais fortes e sem cedências em todos os níveis hierárquicos, sobretudo ao nível dos líderes pois liderar hoje e amanhã será cada vez mais exigente, complexo e ultradinâmico face ao que costumava ser.
O mundo do trabalho e os seus modelos de trabalho caminham a passos largos para um nível de incerteza e imprevisibilidade que acabarão inevitavelmente por acompanhar o ritmo das inovações e das disrupções tecnológicas das empresas pois este não é nem pode ser um jogo de soma-zero. Seja qual for o nosso intuito no mundo do trabalho, sou da opinião que todos deveremos ter um papel participativo e sobretudo transformador.